terça-feira, 31 de julho de 2007

Puzzle


Puzzles (1991)
Fotografia, acrílico, parafusos, eucatex e madeira
Dimensões 57 x 68 X 2,5 cm
Coleção de Isabella Prata (São Paulo).
Foto: César Duarte.
SILVA, Fernando Pedro da & RIBEIRO, Marília Andrés. Rosângela Rennó: Depoimento [Edição do texto e organização do livro: Janaína Melo] Belo Horizonte: C/Arte, Coleção Circuito Atelier, 2003.

Rosângela Rennó, na série de jogos que remetem a brinquedos infantis, volta-se para uma construção mais pedagógica[1] de construção do olhar social através da fotografia, como nas obras Puzzle (Mulher e Homem) (1991) que se compõe de dois tabuleiros sobre dois pedestais de madeira, individuais e separados, dispostos lado-a-lado, contendo imagens móveis de um quebra-cabeça. Cada pedestal expõe uma imagem fragmentada de uma fotografia de identidade, ampliada para as dimensões: 54x68 cm.

Tal foto, de autoria de César Duarte, registra a maneira como essas obras foram expostas. Esta imagem aparece em outros meios de reprodução, sendo eles bibliográficos e digitais, o que a transformou no registro documental de maior acesso para análise. No entanto, mesmo mediante diversas buscas não pudemos encontrar outras imagens referentes ao registro da mesma obra.

Ao mesmo tempo, a artista parece criar um paradoxo entre as idéias de FLUSSER, quando enfatiza, literalmente, a condição de “peças de um jogo”[2] ao colocar as fotografias 3x4, em forma de um jogo da memória, pois, na medida em que deixa clara a idéia de que nos tornamos peças de um jogo, também nos estimula a jogá-lo. O fragmento do texto parece atestar tal idéia do autor: “O universo fotográfico é um dos meios do aparelho para transformar homens em funcionários, em pedras de seu jogo absurdo.”[3]

A utilização de fotografias 3x4 nesses trabalhos provém da intencionalidade, de Rennó, de trabalhar com a identidade das pessoas representadas nessas imagens. Ao longo de seu trabalho, a artista modifica a aplicação dessas fotografias em moldes variados, ressignificando-os. Sendo ora ampliadas e expostas em seqüência sem identificação das pessoas, ora compondo objetos ou jogos, como podemos ver nas imagens a seguir. Como se tudo isso se constituísse num universo de jogos de reconstrução da memória, da identidade que o próprio objeto fotográfico propõe.

A fragmentação dessas imagens gera um dinamismo do olhar, na busca por uma recomposição e ordenação das partes num esforço, também simbólico, de reconstituição da identidade perdida, do indivíduo anônimo. Tal fato desencadeia um processo mental que tende a reconstituir as imagens em nossa memória, numa tentativa de ”estabilizar” a imagem.

Segundo Herckenhoff na obra puzzle: “faz-se uma alusão aos cortes na composição fotográfica, agora segundo um outro sentido, não para a imagem, mas para o próprio ato do corte. A obra é propiciatória da experiência simbólica de reconstituição do sujeito.”[4]

Ao analisarmos as imagens identificamos pistas que nos remete à um outro tempo. A ausência de cores, as vestimentas formais e características fisionômicas (corte de cabelo e bigode) dos indivíduos, revelam um tempo passado e nos remetem, em alguns casos, às fotografias de documentos de parentes distantes em um tempo ou espaço longínquo, de pessoas que nem chegamos a conhecer. Esta sensação de identificação com um familiar remoto, estabelece um laço afetivo de ancestralidade. A partir de obras como essas podemos encontrar uma relação com o passado, com entes que viveram antes de nós e daí agregamos um fator que é a curiosidade. Poder-se-ia imaginar que tais indivíduos anônimos pudessem ter vivido no tempo de nossos avós ou bisavós e nos tornamos, de certa maneira, “solidários” a essas “pessoas”, lançando sobre essas imagens um olhar afetivo, como o olhar que lançamos a uma pessoa órfã ou perdida.

Barthes atribui essa sensação ao caráter subjetivo que uma fotografia pode apresentar diante de cada espectador (Spectator), mediante a relação que este estabelecerá com ela e afirma: “Eis-me assim, eu próprio, como medida do “saber” fotográfico. O que meu corpo sabe da fotografia?” [5]
Tal sensação, ele também relaciona com um sentimento de morte que, de certa forma os fotógrafos contribuem para difundir na medida em que reduzem um momento vivo em uma cena congelada em um papel fotográfico e compara o horror da morte à sua plenitude. Talvez a melancolia que nos assola quando vemos uma fotografia, como quando nos deparamos com os trabalhos de RENNÓ, possa ser relacionada com um sentimento de dor vivenciado pela certeza de nossa própria morte e sobre a qual BARTHES, expõe na seguinte passagem: “O único “pensamento” que posso ter é o de que no extremo dessa primeira morte está inscrita minha própria morte; entre as duas mais nada, a não ser esperar.”[6]

Cabe relembrar que tais fotos trazem em si conteúdos objetivos e técnicos próprios de uma fotografia para documentos de identidade. E aqui, valho-me das observações metodológicas de KOSSOY,[7] ao inferir sobre dada imagem, questionando seu uso e procedência original a fim de compreender sua função em um dado momento histórico, além de sua importância e configuração no momento presente. Neste caso, a importância dessas imagens fotográficas, que passam a fazer parte de uma obra de arte e ganham um novo contexto histórico de valor, para o campo das artes plásticas é que elas ressignificam a configuração inicial para a qual teriam sido “programadas”. Como, por exemplo, a utilização de fotografias em preto e branco que tende a parecerem mais antigas do que realmente são.

Na obra, visualizamos tais imagens e sabemos que foram produzidas num espaço de tempo delimitado pelas implementações tecnológicas de sua época. Pois, com a difusão da fotografia colorida, até mesmo as fotos para documentos, amplamente produzidas em preto e branco até a década de 1980, passaram a ser produzidas a cores a partir de 1990, até chegar aos nossos dias quando não encontramos mais fotografias 3x4 em preto e branco.

Contudo, ainda hoje, são produzidas fotos em preto e branco através da fotografia digital, que continuam insinuando um tempo de um passado remoto, somente contradito pelos elementos iconográficos da foto, as vestimentas, as posturas das pessoas representadas e pelo resultado estético característico do papel de impressão digital cuja materialidade difere daquele tradicional, utilizado para negativos.

As fotografias para documentos, agregam um valor específico para a obra, uma vez que de maneira geral, e até hoje, são produzidas de forma mecânica e objetiva, em estúdios fotográficos e com cânones pré-estabelecidos, para cumprir um papel de identificação do sujeito. São estas características que se relacionam com a obra e a configuram com o intuito de trazer à tona um retrato, cuja objetividade de cada indivíduo estaria supostamente à mostra, revelando-se inclusive, em sua forma aparente de apresentação.

A própria maneira como a artista instala ambas as obras as insere em espaços geométricos retangulares que, enquadram as imagens numa mesma estrutura matemática, proporcional e pré-formatada, aspectos estes que, contribuem para afirmar a posição rígida em que estão dispostas. Lado-a-lado homem e mulher como em um altar, prostrados diante do tempo, com fisionomias sérias e resolutas, parecem nada dizer à cerca do tempo em que se inserem e se evidenciam pelas vestes e penteados, além de uma datação na direita inferior da foto do homem que denuncia um tempo em que a datação da fotografia tal como se apresenta nesta imagem, tende a delimitar o sujeito num espaço-tempo objetivo, que parece rotulá-lo com os seguintes dizeres: “Data de validade específica e delimitada”, uma espécie de “coisificação” do indivíduo, como se faz com as fotos de passaportes produzidas até hoje, com fotos de presidiários e com mercadorias industrializadas, amplamente registradas, datadas e controladas.

Como o contato que estabelecemos com essa obra, “puzzle”, está sendo realizado através de imagem impressa e não pessoalmente, colocamos aqui umas questões: São os fragmentos desta obra, dotados de mobilidade? Poderíamos através da interação com a obra, remontarmos estes quebra-cabeças, essas imagens fragmentadas? Provavelmente sim e esta postura de interação com a obra, também está sendo determinada pela artista, que mantém o espectador em pé, diante das imagens, contrariando a posição à priori relaxada, na qual comumente nos dispomos diante de jogos desta categoria. Como se quisesse ressaltar que, apesar de ser um jogo, ele não possui o caráter de entretenimento lúdico ou escapista. Fato que se reforça com as fisionomias austeras dos retratos que aparecem com esfinges, a indagar o espectador.

[1] Idem, p. 137.
[2] Ver imagem p. 33 do presente trabalho
[3] Op. Cit. p. 65
[4] Op. Cit. p. 138

[5] Cf. BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Trad. Julio Castañol Guimarães, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 20.
[6] Idem. p. 138.
[7] KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 2ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

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