terça-feira, 31 de julho de 2007

A fotografia na obra de Rosângela Rennó

Mulheres Iluminadas
Série “Pequena ecologia da imagem”
1988 Fotografia em papel de brometo de prata
Dimensões 35 x 27 cm ou 120 x 80 cm

A escolha de Rosângela Rennó[1] como ponto de partida para análise da fotografia contemporânea nas artes plásticas, adequou-se a essa pesquisa por diversas questões: A importância que a artista representa para o cenário da arte contemporânea internacional, pelo trabalho de fusão entre fotografias jornalísticas e refugos fotográficos resgatados de diferentes épocas e fontes, que a mesma explora através da apropriação e manipulação para realizar suas obras. Pelo poder que essas obras têm de recodificar imagens fotográficas e inseri-las num outro contexto perceptivo e simbólico que trazem à tona questões de ordem sociológica, política e ideológica além de trabalhar com a memória coletiva e individual, com idéias de construção/desconstrução de uma identidade nacional multicultural, associando esses conceitos ao fazer artístico, até a elaboração do projeto final de uma obra de arte, que ocupa um espaço tridimensional. “A poética de Rosângela Rennó rompeu de vez com as fronteiras entre a fotografia, as artes visuais e a literatura, adentrando um terreno anterior a qualquer modalidade estética instituída: o território próprio da arte.”[2]

Com base nas reflexões desenvolvidas no capítulo anterior, analisaremos algumas obras da artista, iniciando com uma breve contextualização histórica de seu trabalho e formação.
Rennó graduou-se em arquitetura pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, em 1986 e em artes plásticas pela Escola Guignard, em 1987, também em Belo Horizonte.

Doutourou-se em Artes pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade da São Paulo, mudando-se posteriormente para o Rio de Janeiro. Iniciou sua trajetória artística na década de oitenta, tendo realizado sua primeira exposição coletiva, na Galeria IAB, em 1985 e primeira exposição individual quatro anos depois, na Sala Corpo de Exposições, ainda em Belo Horizonte.
Nesta mesma década ganhou prêmio em salões e galerias de arte no Rio, em Belo Horizonte e São Paulo. Tais prêmios introduziram-na numa trajetória de exibição em muitos outros lugares do país e no exterior, nos quais a artista pode participar e garantir uma representatividade da arte contemporânea brasileira em vários países europeus e americanos. Hoje, seu acervo pode ser encontrado em inúmeras coleções de arte no país e no exterior.

Em 1997 é publicado o livro Rosângela Rennó, dentro da série artistas da USP, que apresenta a obra da artista por meio do ensaio “Rennó e a beleza e o dulçor do presente”, escrito pelo crítico Paulo Herkenhoff, que utilizo como referência nesta pesquisa.

Rennó faz parte de um período da produção artística contemporânea que consolida o rompimento com inúmeros cânones da arte moderna, fundindo as barreiras entre as linguagens artísticas e preconizando o que FLUSSER[3] escreveu sobre a questão da superação do aparelho na fusão entre a arte e fotografia.

Conseguindo transcender a máquina desviando a ênfase no “aparelho” para a ênfase no desenvolvimento de estéticas relevantes para o campo da arte o que, consequentemente, modifica o modo de fruição do espectador com a obra, ou seja, consegue modificar de certa maneira, a forma como o espectador se relaciona com a obra. Ampliando as formas tradicionais de apresentação da imagem fotográfica (papel fotográfico, bidimensionalidade, formato retangular) a artista amplia também as possibilidades de reflexão e percepção de uma mesma imagem através da expansão dos pontos de vista, não somente pelo ângulo de composição da fotografia, mas também pelas diversas formas que esta pode tomar quando adentra o espaço das galerias de arte. Essa modificação permite ao espectador refletir sobre coisas outras, que vão além da própria imagem e que, possibilitam muitas vezes estabelecer conexões com um tempo histórico específico, com condições sociológicas evidenciadas, com possibilidades filosóficas suscitadas e com o próprio papel da fotografia e da arte em nossa sociedade.

Na década de 1980, RENNÓ passa a colecionar fotografias antigas, adquirindo-as de álbuns de família descartados, em estúdios populares ou em feiras. Quando em 1989 muda-se para o Rio de Janeiro define seu trabalho como mais realista e agressivo, dizendo-se influenciada pelas características da metrópole e pelos trabalhos de Hélio Oiticica e seus Bólides[4]. Trabalha com sobras da cultura e fotogramas descartados, arquivos penitenciários, notícias da crônica social ou policial, recompõe as imagens e as reorganiza em sua trajetória como artista para elaborar suas obras. Com este material inicia um trabalho que denominou “Arquivo universal”.[5]

Apropria-se de tais imagens e atribui sua própria leitura na construção de uma linguagem para as artes plásticas. Deixa de produzir imagens, priorizando o resgate do que ficara esquecido pela produção massificada da pós-modernidade.

Segundo a artista, toda fotografia seria mentirosa e constituída por uma névoa simbólica, um espaço inatingível, que seria o próprio acesso ao momento em que a foto foi produzida e a percepção de toda a complexidade inerente a um determinado instante.[6]sociolquest atualidade, trazendo as,stfotografia contempor

Tadeu Chiarelli, ao referir-se ao trabalho da mesma artista identifica nele questões peculiares à produção fotográfica das décadas de 1980 e 1990, o que denota a importância da obra de RENNÓ para o contexto da arte contemporânea brasileira, enfatizando, ainda:[7]

Se no princípio, sua produção possuía uma dimensão lírica, comentando as distorções do cotidiano, (através da apropriação de fotos descartadas dos álbuns de família, por não se adaptarem às normas de perfeição técnica), com o passar do tempo passa a ganhar uma potência épica, na medida em que a artista repropõe ao circuito da arte a imagem de brasileiros destituídos de qualquer vitalidade - imagens fantasmagóricas de seres anônimos.

Traçar o panorama composto por artistas contemporâneos que compartilham uma mesma tendência, como o fez CHIARELLI, está de acordo com a proposta de análise iconológica, defendida também por KOSSOY[8] quando este denota a importância de pesquisar outros autores contemporâneos, para se entender a intencionalidade de determinada obra.

Ao estabelecer uma leitura da obra de Rosângela Rennó, nos sobrevêm inúmeras questões. Uma questão marcante é a dualidade com a gênese das identidades fotografadas. Tal questão, também recorrente nos meios de comunicação de massa onde, muitas vezes, as identidades se perdem em meio a um excesso de ícones visuais, parecem apelar para um lugar de sentido no mundo pós-moderno, ou para uma ressignificação. A artista, atentando para isso, constrói sua trajetória artística na busca de saídas e questionamentos em torno deste eixo de indagação social, de um resgate da memória coletiva através do processo artístico.

O crítico de arte, Tadeu Chiarelli, no mesmo texto escrito para a exposição Identidade/ Não identidade: Fotografia Contemporânea Brasileira, escreve sobre a produção de artistas plásticos brasileiros que revelam este mesmo conflito, como cerne de seus trabalhos fotográficos. O autor cita as décadas de 1970 e 1980, como fundamentais para uma mudança, sobretudo no campo da arte, e complementa:

Se a fotografia brasileira até os anos 80 se caracterizou, portanto, e em grande parte, pelo desejo - ou obrigação - de buscar a identidade do "brasileiro", ou dos diversos brasileiros espalhados pelas mais variadas regiões do país, uma nova geração de artistas, surgida no final da década passada, tentou demonstrar através desse mesmo meio (sempre tão preso à captação do "real") a própria negação da possibilidade de caracterizar o brasileiro como ser social ou individual.[9]

Tal exposição reuniu importantes nomes da fotografia contemporânea brasileira, no âmbito das artes plásticas e esteve representada também por Rosângela Rennó.

O autor descreve as linhas de pesquisa dos artistas expositores e identifica duas vertentes de pensamento em torno da questão da identidade: uma que diz respeito a uma valorização dessas “identidades perdidas” e outra que enfatiza essa perda, apagando de vez os traços de individuação. Contudo, algumas dessas vertentes permeiam-se em suas propostas e convergem de uma maneira ou de outra para uma mesma questão, como se pode constatar neste trecho do autor:

Tais artistas, através da exploração da perda da própria identidade ou da identidade do outro, discutem o aniquilamento do indivíduo numa sociedade de massas, com as características avassaladoras que tal tipo de sociedade assume num país como o Brasil.[10]

Outro ponto em comum, segundo o mesmo autor, é a recusa de produzir obras fotográficas onde a objetividade da imagem seja o caráter principal. E aqui cabe relembrar determinadas obras de RENNÓ, cujas características nos provocam reflexões acerca da impossibilidade de identificação do indivíduo fotografado ou da afirmação de seu lugar dentro do contexto de nossa sociedade. O que explica a apropriação de imagens, a utilização de desfoques, cortes, sobreposições de camadas e distorções produzidas a partir de operações técnicas na hora da produção e/ou edição/revelação da imagem ou até mesmo quando da sua exposição. Em contraposição à nitidez da fotografia buscada por fotógrafos de gerações anteriores.

[1] Rosângela Rennó nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1962.
[2] MELO (apud CHIARELLI, 2003, p. 92).
[3] Op. Cit. 1983, cap.2.
[4] Cf. HERKENHOFF, Paulo. Rosângela Rennó. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 134 e 136
[5] RENNÓ, Rosângela. O Arquivo Universal e Outros Arquivos. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
[6] Cf. Rosângela Rennó: Depoimento [Coordenação Fernando Pedro da Silva, Marília Andrés Ribeiro, Edição do texto e organização do livro: Janaína Melo] Belo Horizonte: C/Arte, Coleção Circuito Atelier, 2003, p. 4.
[7] Fragmento de texto escrito por Chiarelli, para a exposição: “Identidade Não Identidade: Fotografia Contemporânea Brasileira”, no MAM de São Paulo, em 1997, assunto que desenvolverei com maiores detalhes no próximo tópico.
[8] Op. Cit. 2001, p. 104.
[9] Op. Cit. referência 42.
[10] Idem.

A mulher que perdeu a memória
Série “Pequena ecologia da imagem”
1988 fotografia em papel de brometo de prata
Dimensões 35 x 27 cm ou 120 x 80 cm




Alice não mora mais aqui (1987/88)
Série “Alice”
Fotografia em papel de brometo de prata
Dimensões 35 x 27 cm ou 120 x 80 cm
HERKENHOFF, Paulo. Rosângela Rennó. São Paulo: EDUSP, 1998.


Outro marco da produção fotográfica que surge no Brasil, entre os anos 1980 e 1990, é a tendência a extrapolar o espaço bidimensional, plano e objetivo, expandindo a fotografia para o campo da tridimensionalidade, para as salas expositivas e produção de objetos.

Chiarelli, sobre a questão da identidade na obra de Rennó, conclui:
Ao enfatizar a perda da identidade do "homem brasileiro" ou mesmo do sujeito individual, esfacelado na sociedade contemporânea, a fotografia explicita a sua própria perda de identidade nessa mesma sociedade repleta de novos meios para a "duplicação" da realidade, meios esses que aceleram a percepção tornando, para muitos, obsoleta a própria produção fotográfica.[1]
[1] Idem.




Afinidades eletivas
1988 2 fotografias película ortocromática, óleo mineral, mármore, alumínio e vidro
Dimensões 19 x 09cm



Neste objeto Rennó trabalha com fotografias de casamento descartadas e faz a fusão entre fotografias de casais diferentes, de modo a confundir as duas imagens. Fato interessante que nos leva a refletir sobre o papel do casamento na atualidade, onde homem e mulher repensam seus papéis diante da família e sociedade. Onde os relacionamentos conjugais manifestam-se de maneiras diversas e a possibilidade de recorrer ao divórcio marca uma nova etapa da emancipação, sobretudo, feminina.
Posteriormente, a artista efetuou inúmeros trabalhos em diferentes formatos com esse mesmo gênero fotográfico. Trabalha com o resgate do papel da mulher na sociedade em diversas séries dentre elas, “Alice” e “Conto de bruxas”, onde revê o papel feminino diante de um imaginário construído a partir de imagens ilustrativas de contos de fadas que são veiculadas em livros de histórias infantis.


Encarnação do verbo (1988)
Série “Conto de bruxas”
Fotografia em papel de brometo de prata
Dimensões 160 x 100 cm
HERKENHOFF, Paulo. Rosângela Rennó. São Paulo: EDUSP, 1998.

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